Terça-feira, 15 de Maio de 2012

O ALPENDRE MUDOU-SE PARA O FACEBOOK

O paciente estava em coma há bastante tempo, há tanto tempo que as visitas deixaram de aparecer, mas apesar do estado moribundo, o cerebro dava sinais de actividade e coração continuava a bombear sangue e toda a gente sabe que enquanto há vida à esperança.

Pode-se matar muita coisa, pode deixar-se morrer muita coisa, mas a esperança é algo que nunca desaparece, mesmo que seja residual, ela está lá à espera. É como a sorte, dá muito trabalho ter sorte, quando se trabalha muito tem-se sorte, quando se acredita na sua capacidade de trabalho e na capacidade em desenvolver tarefas, então tem-se esperança.

Sem fantasias nem ilusões, continuo a acreditar nestes e noutros disparates, tais como acreditar que aquilo que escrevo não deve ficar na gaveta, que deve ser partilhado, pois o que recebo de volta é a necessidade de a encher de novo.

Aos onze anos deu-me a vontade, vi o olhar frustrado da minha mãe, que só se denunciou no olhar e sem saber deu-me o alento necessário para não mais depender da opinião alheia. Sou eu que decido se está bem ou mal, se eu que decido se gosto ou não gosto e acredito que o meu gosto é um gosto comum idêntico ao de outras pessoas que tenham pela leitura a mesma paixão que eu tenho.

 

Até Já a uns, Adeus a outros. Para todos, o prazer foi meu em terem aceite a minha partilha.

 

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publicado por Sonhador de Alpendre às 09:23
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Sábado, 27 de Dezembro de 2008

CANETA A ESCREVER UM DISCURSO DE ALMA

Ela não percebia se era a caneta que teimava em não escrever ou se era a mão que se recusava a ser cúmplice daquela palavra de despedida,

 

(Sempre apressado no voltar entrava em casa pela porta da cozinha como de costume, a quietude na casa não sendo invulgar era por aquela hora anormal. Pousou o ramo de flores que trazia diariamente e percorreu o resto da cozinha, entrou pelo corredor até chegar à sala comum onde passavam a maior parte do tempo)

 

até ali a caneta e mão foram unidas completavam-se no descrever das emoções, mas agora recusava-se a continuar, levemente irritada pela contrariedade como se alguma parte de si não quisesse colaborar naquela decisão amadurecida, resolveu pausar perante a teimosia da caneta e reler em voz alta o que a alma lhe tinha ditado até aquele momento.

 

(na sala a mesma inquietante quietude, nem sequer a lareira crepitava como de costume desde que a mudança de estação tinha roubado as folhas às arvores, espreitou de relance o escritório, pousou o casado e o cachecol no bengaleiro e subiu aos quartos, espreitou no principal, a cama arrumada, a janela fechada com as portadas abertas a deixar a luz ocupar a escuridão, abriu as portas dos restantes três quartos e apesar de não ter olhado com esse intuito tudo lhe parecia estar arrumado como de costume, a casa de banho do andar de cima estava com normal ar solitário que só se alterava quando recebiam visitas e regressou ao quarto para confirmar se a casa de banho da suite estava vazia.

Regressou ao andar de baixo e pela primeira gritou o seu nome)

 

- Laura!?

 

“Meu Querido Afonso, faz por estes dias, oito anos de felicidade, oito anos de alegrias desinteressadas com que tens povoado a minha alma egoísta. Amo-te como as flores amam a primavera pela qual se deixam florir, queira este amor poder ser trocado por alimento e não mais o mundo passaria fome. Tenho-te em carinho imenso, numa ternura de mãe que hei-de…”

 

Laura pegou de novo na caneta para rectificar o “hei-de” e releu a última frase já emendada

 

(Afonso perante o silêncio respondido insistiu mais alto e em tom claro de ansiedade)

 

- Laura, onde estás!?

 

(Percebendo o ridículo da insistência consultou a lista de assuntos discutidos durante o pequeno-almoço procurando na sua desatenção o aviso para aquela estranha ausência, Laura nunca poderia ter saído, a menos que fosse dar uma volta a pé pelo bosque ou que alguém a viesse buscar, coisa comum em tempos de folhas nas árvores e chilrear de pássaros, repetiu mentalmente a conversa matinal e em nada se revelava a razão deste desaparecimento. Abriu a porta da rua e sentiu o desagradável de estar na rua em inicio de Inverno com o vento a anunciar a chegada para breve da neve, sem sequer ter um chapéu, um gorro, fosse o que fosse para esconder o corpo daquele frio. Era impossível Laura ter saído, ela detestava o frio e nem mesmo saia para ir à garagem ali a 10 metros da casa onde guardavam a lenha para aquecer a lareira no Inverno)

 

- Lauraaaaaa !!!

 

(Gritou ouvindo-se no eco, desesperado na esperança que ela contrariasse os seus próprios hábitos, mais silêncio respondido e resolveu entrar de novo e seguir até à sala, na esperança de a ver surgir de bandeja na mão, o chá quente a fumegar o pratinho cheio de scones ainda quentes a taça com a manteiga quase derretida e aquele olhar meigo num sorriso descarado demonstrativo do amor que transbordava de si)

 

“…uma ternura de mãe que poderia ter sido não fosse este meu desespero de ser eu, da minha ingratidão perante o teu amor de perceber que um dia iríamos os dois estar sentados em expectativas diferentes quando a vida exterior se tivesse cumprido no seu ciclo a nada mais nos interessasse a não ser nós. Dentro de mim há uma Laura que tu e eu desconhecemos e ela está viva, essa minha desconhecida que me quer tomar por sua que me quer ocupar o corpo a mente a boca os meus gestos e atitudes e até as minhas palavras. Apesar do teu amor e amizade eu sou fraca, uma fragilidade incontida que se destina a ser vencida sem apelo e eu, meu amor, não te quero por perto dela, não quero que a ames, eu que nunca do teu amor senti insegurança fico agora num pranto por saber que irás amar este ser eu no futuro, este ser eu a instalar-se em mim e que abomino, quase que te odeio enlouquecida pela tua cegueira, por pensar que a vais possuir carnalmente tal como fazes comigo agora, quando finjo que me zango contigo para me deliciar com os teus carinhos, as tuas tão ternas insistências, temo que a vás perdoar, a vás desculpar a levar-lhe pãezinhos com sumo de laranja ao quarto, que a vás despertar com os odores das flores por ti colhidas. Não, meu amor, não suporto mais esta certeza, perdoa-me meu amor, mas antes de eu me transformar neste outro ser eu….”

 

E parou onde a caneta lhe segurou a mão, a sua determinação estava mais forte não vacilava sabia muito bem o que queria e não era uma caneta que a iria fazer recuar, tivera a sua oportunidade chamara-lhe a atenção mas não era aquela caneta que a iria impedir de prosseguir os seus intentos,

 

 (Ia sentar-se no sofá habitual, onde lia a correspondência, o jornal ou um livro, dividido nas conversas com Laura, quando reparou que junto às fotografias emolduradas a segurarem as memórias dos momentos a dois, estava uma carta com o seu nome bem visível em letras grandes “Afonso, Meu Amor ” sentiu um calafrio a percorrer-lhe o corpo, pegou a tremer na carta sentou-se abriu-a rasgando-lhe o envelope ansioso e de relance adivinhou o drama, olhou à volta em desespero final de tudo ser uma partida de mau gosto)

 

-Oh Não! Laura!

 

“… preciso agora de partir enquanto sou eu, eu tenho de partir compreende-me como sempre o fizeste, perdoa-me como sempre, mas eu tenho de ir nesta egoísta decisão, sei que te deixo todo o meu amor, para te dar alento para prosseguires a tua vida sem esta alma mascarada de mim em que me estou a tornar, adeus meu amor e guarda-me em ti assim com todo este amor.

A tua sempre tua Laura”.

 

Laura terminou a carta selando-a com um beijo longo e silencioso onde tinha inscrito o nome de Afonso, dobrou o manuscrito meteu-o no envelope emudeceu o rebordo com os lábios e colocou-o na mesinha das fotografias presas em molduras que guardavam o seu passado sem futuro.

 

(e saiu com a carta na mão, sem se importar com o anuncio de neve que o vento frio espalhava por todo o bosque, correu em direcção à garagem e abriu a porta, espreitou e só viu a enorme pilha de lenha seca, só quando se virava para regressar se apercebeu do ranger da madeira, um ranger diferente daquele provocado pelas corridas que os ratos faziam ao pressentirem passos humanos, aquele ranger era muito diferente e resolveu de novo espreitar, agora por detrás da pilha de lenha, avançou e a primeira coisa que viu foram os pés nus, as pernas brancas também desnudadas até ao joelho e o resto de Laura ali inerte pendurada por uma corda)

 

-Oh Não! Lauraaa ! Não, meu amor! Não! Não! Não!

 

Cá fora escurecia rapidamente, o vento frio a anunciar a neve por entre a solidão do bosque desabava num silêncio que se fez brutal como que a escutar o pranto de um amor quebrado como se quebram todos os amores, mais tarde ou mais cedo.     

 

publicado por Sonhador de Alpendre às 01:05
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Quarta-feira, 28 de Maio de 2008

TI LEBRES E A CORDA DA BURRA

 

 


 

Na televisão o jogo corria à velocidade que os minutos e as pernas dos jogadores permitiam. Na tasca já tinha passado a hora dos petiscos, dos caracóis, das moelas, dos pipis, já pouca gente permanecia, num dos cantos duas mesas juntas, estava uma presença não habitual, Paulo era visita dos anfitriões, Guedes deliciava-se com um frango assado, Adozinda à volta com a sopa e uma salada por causa do colesterol, ambos a chegar muito perto dos 60 anos, proprietários da Tasca do Largo.

Noutra mesa mais afastada, a alheada mãe de Guedes, Alzira, 82 anos com a memória estacionada em 1972 altura em que o filho partiu para a Guiné, ficava horas a olhar para o vazio nos neurónios, enquanto não a levavam a deitar. Aborrecida porque não a deixavam vassourar a tasca sem perceber que as vassouradas tinham hora mais ou menos certa. Noutra mesa ainda resistiam dois clientes da bica mais a macieira que olhavam divididos entre aquele estranho e os golos falhados na televisão.

No meio da pequena sala a última figura presente passava despercebida, no meio das historias, das gargalhadas até que subitamente Paulo sentiu o campo de visão a diminuir, os sons a deixarem de chegar ao cérebro, o cérebro todo concentrado naquela figura, naquele amontoado de pessoa,


 

(em cima da mesa o pão alentejano acabado de sair do forno, ainda quente, a sopa de feijão. O queijo, o paio caseiro, o frango assado do Guedes, a salada da Adozinda, as gargalhadas as historias, mas Paulo não conseguia tirar os olhos daquele amontoado de pessoa)


 

com a cabeça em cima da bengala, antes, com a mão em cima da bengala e a cabeça, mais todo o peso do seus 86 anos, em cima da mão, Paulo sabia que estava a ser mal educado e que ninguém iria perceber o alheamento repentino, mas nada mais lhe interessava naquele momento, deixou-se guiar pela intuição, tentou salvar tudo com uma frase


 

Aquele senhor vai morrer muito em breve!”


 

Disse-o com certeza científica, como se fosse um entendido na matéria, como se tivesse acabado de aterrar da Suécia, com o Nobel na carteira, ganho por saber aquelas coisas.

Os anfitriões voltaram a cabeça para ver o que já sabiam encontrar, sem precisarem de aterrar vindos da Suécia, com o Nobel na bagagem, simplesmente a regressaram com os olhos em baixo à mesa, ditando a sentença


 

Está assim desde que a mulher morreu!”


 

como se fossem os juízes da aldeia, a não aterrarem vindos da Suécia, a não virem da Suécia, nem sequer um prémio Nobel na bagagem, somente juízes a ditarem uma decisão sem apelo,


 

(quanto muito com agravo)


 

sem ser passível de recurso, o amontoado de pessoa a sentir que falavam dele, dele que vivia sem esperança alguma, dele que vivia uma morte ainda incógnita, levantou a cabeça ao mesmo tempo que Paulo lhe cravava o olhar sem disfarçar.

O rosto não era rural, era um rosto de empregado de escritório, de farmacêutico, de empregado da repartição de finanças, os óculos atestavam-no, mas o arrepio que Paulo sentiu do calcanhar até a um ponto especifico do seu cérebro veio directo do olhar, daqueles olhos míopes, sem cor definida, daqueles olhos que gritavam ajuda


 

(mais do que ajuda, aqueles olhos gritavam por coragem)


 

ele era a tristeza personificada, podiam colocá-lo numa redoma de vidro, chamarem excursões de todo o mundo para verem o que era o olhar da tristeza, seria estudado, fotografado, documentado, fariam pratos com o seu olhar, talvez relógios, com toda a certeza estampavam-lhe o olhar em t’shirt’s, talvez acontecessem alguns milagres, teria que ser canonizado, ficaria para a eternidade, seria o Santo Tristeza.

Alzira, saiu do estacionamento memorial de 1972 e foi mais atrás, ainda antes do filho ir para a guerra, ainda antes de se terem mudado para aquela aldeia onde viva já sem ter a certeza de o filho ter voltado da Guiné, com a doença a declarar-se antes de fazer cinquenta anos, Alzira a regressar por momentos, a dar um pouco de sentido às perguntas que se cruzavam pelo ar, como se em vez de olhar o vazio dos neurónios conseguisse ver as perguntas que saiam em ondas magnéticas disparadas em todas as direcções,


 

Tu és o Jacinto, filho da Maria Bárbara e neto do Joaquim Silvestre”


 

O dono do olhar triste, agora com nome, recuperou um pouco de brilho, parecia um brilho de esperança, virou-se para donde chegava a voz da tia Alzira admirado por fazer parte das memórias estacionadas em 1972 e confirmou, juntando mais um pormenor, como se esse pormenor viesse das perguntas a cruzarem os ares, apanhadas pela velha desmemoriada


 

... e filho do Manuel Lebres do Ti Lebres!”


 

A anfitriã, baixou ainda mais os olhos, tirou os óculos, limpou as vistas regressou ao olhar do marido que para fugir das emoções repetiu um pouco mais de frango cortou uma fatia de pão, outra de queijo e devolveu o olhar à televisão.

Enquanto o marido seguia as peripécias da bola, Adozinda retornou à infância e àquela manhã friorenta, lembrava-se de estar deitada na cama à espera da ordem para saltar dela para mais um dia de lides domésticas, admirada com o tardar da mãe e pelo sussurrar de vozes à porta,


 

Já sabe? O Tio Lebres morreu!”


 

(Nem se sabe ao certo se ele tinha sobrinhos, mas pensa-se que não!)


 

Não teve permissão para ir ver o Ti Lebres dependurado na corda de prender a burra, nem sequer participou nas buscas à burra e dessa manhã pouco mais há para recordar, pouco mais reteve, dessa manhã fica-se tal como a memória da sogra, estacionada em 1972, quando o filho partiu para a Guiné.

Os mais novos que agora restam para contar a história mal se recordam do Manuel Lebres e ninguém na sala daquela Tasca tinha idade suficiente para entender o acontecimento,


 

(as memórias soltas e dispersas a serem agrupadas pelas perguntas do

estranho)


 

nem sequer o filho tinha grande interesse na história, a não ser invejar a coragem do pai na mesma medida que não lhe entendia a demência da justificação para tal acto de coragem.

Ti Lebres tinha 97 anos acabados de fazer havia menos de três semanas, entretido com a horta subia descia o monte cavando as ervas daninhas acompanhado pela burra. Começava o dia às seis da manhã, já com a sopa, reforçada com pão e chouriço e uma pinga de tinto no estômago, acrescentava medronho ao café, fumava um dos três cigarros a que se permitia diariamente e abalava para a rotina que julgava necessária para a sua vida fazer sentido. Terminava os seus afazeres às seis da tarde, tratava da burra, fazia horas na taberna até ir dormir depois de mais um naco de pão caseiro, uma fatia de presunto e quatro línguas de gato.

Havia meses, senão mesmo semanas que Maria Bárbara via o seu abdómen dilatar-se de uma forma anormal, mais tarde veio-se a saber que era um tumor traiçoeiro


 

(nem sequer existem outros tipos de tumor)


 

mas por aquela altura só tinham passado alguns meses senão mesmo semanas e o Ti Lebres começou a andar preocupado e desconfiado


 

(mais desconfiado do que preocupado)


 

E tão desconfiado ficou que acabou dependurado na ponta da corda da burra, sem ninguém saber por onde se tinha escapado o bicho.

Quem deu pela coisa foi o Derby o único sobrevivente em dia de desafio entre o Benfica e o Sporting, a cadela foi-os parindo e o porco foi-os comendo, quando deram pela coisa, por alturas do intervalo do desafio,


 

(Não é importante mas ao intervalo o Benfica ganhava por 5-0)


 

só um dos cães sobrevivia escondido por debaixo da mãe salvo da asfixia por pouco e no mesmo instante em que foi salvo ganhou o nome porque passou a ser conhecido,


 

Derby!”


 

gritavam-lhe o nome para ele largar os atacadores dos sapatos do Lebres agora dependurado por uma corda e num quadro patético onde figurava o teimoso cão


 

Larga Derby! Sai dai!”


 

Cão pendurado no ar de dentes presos nos atacadores dos sapatos do falecido Ti Lebres

com a mesma tenacidade com que sobreviveu ao porco e ao peso da mãe


 

(Continua a não ser importante mas o Benfica acabou por ganhar o desafio por 12-0)


 

A Maria Bárbara já estava farta do


 

sacana do velho que anda amalucado com a ciumeira!”

do que o marido insinuava nas conversas na taberna, a dizer que ela estava grávida, ela que em todos os seus 94 anos só se tinha deixado convencer pelos olhos azuis daquele homem, setenta anos


 

(pouco mais de setenta anos, talvez dois ou três anos mais)


 

a dormir com ele, só com ele, uma vida de trabalho a puxar o arado para cima e para baixo, nas vindimas, na apanha do tomate, as mãos na terra em busca dos cogumelos, sem olhar para mais ninguém, sem querer olhar para mais ninguém, ela que não havia conhecido outro homem, ela que já tinha passado os 21 anos quando se deixou convencer na presença da burra, a burra a fazer de testemunha daquela união, daqueles gemidos, para ela mais dor do que prazer. Ela que há vinte anos não era procurada pelo marido e o marido não aguentando mais com a desonra que lhe ocupava a cabeça, para ele não havia uma única dúvida, a mulher com quem dividia cama há mais ou menos setenta anos estava grávida, e não era dele, que nos últimos vinte anos não se lembra de sentir impulsos juvenis junto da sua Maria Bárbara


 

(nem de qualquer outra espécie de fêmea)


 

por isso não restava duvida, a sua mulher andava a enganá-lo e por certo com um homem mais novo.


 

(a certeza que tinha de era mais novo provinha do facto de ele não conhecer nem na sua aldeia, nem nas aldeias vizinhas ninguém mais velho do que ele)


 

O Sol ainda não tinha aparecido atrás do Monte do Cai do Telhado, mas adivinhava-se a sua chegada, antecedida por uma luminosidade que dispensava qualquer luz artificial, a aldeia a acordar repentinamente com a noticia, o bichanar dos vizinhos entre os cheiros das chaminés a encarregaram-se de o fazer chegar a todas as casas, não tardou estava a aldeia em peso no estábulo do Ti Lebres, a corda da burra, dependurada na trave mestra, o Derby agarrado aos atacadores, a burra desaparecida, a inconsolável Maria Bárbara divida entre o


 

sacana do velho que andava amalucado com a ciumeira!”


 

e as saudades a iniciarem-se ainda com o Ti Lebres dependurado na corda


 

e agora que vai ser de mim aqui sozinha?!”


 

Naquele tempo nascia-se e morria-se em casa, vinha a parteira ou vinha o padre e o assunto estava resolvido enterrava-se o pai no quintal, quando a carne secasse amanhavam-se os ossos numa caixa sem etiqueta e não se falava mais no assunto.


 

(Sobretudo quando morriam em pecado como o Ti Lebres dependurado na corda de prender a burra mais o Derby pendurado nos atacadores dos sapatos)


 

E assim ficou o pai de Jacinto arrumado na caixa já em ossos, ele já nem se recorda do paradeiro da caixa, tão pouco se lembra da maior parte das memórias desse dia., estava ali a pensar que se queria ir embora,

Ele transportava dentro de si a memória do pai e era naqueles momentos que pousava a cabeça na bengala


 

Pensava na mulher que tinha morrido uns meses antes,


 

(a ver-se também ele preso pelo pescoço na corda da burra, talvez com a mesma corda do pai se a descobrisse, talvez a corda da burra amontoada junto aos ossos na caixa desaparecida)


 

Era nisto tudo que Jacinto pensava, no pai dependurado na ponta da corda, ele a ver a barriga inchada da mãe, a pensar no irmão que ela trazia lá dentro, sem saber que a mãe estava a morrer, que o irmão afinal era um tumor, que rebentou,


 

(quatro anos depois, não nove meses)


 

a mãe a cair no chão a sair-lhe sangue pela boca, pelos ouvidos, nada de águas rebentadas, nada de irmão. Jacinto a pensar na mulher dele três meses atrás, sentada na cozinha, debruçada sobre a mesa onde passava o tempo livre ou a cozinhar ou a ver as novelas, ele a querer acordá-la e ela teimosa a resistir.


 

(a morte a deixar de estar incógnita, a morte a apresentar-se)


 

ele na Tasca debruçado sobre a mão, a mão apoiada na bengala a pensar que queria não acordar, que queria não ir para o frio da casa, para o frio da cozinha, para o frio da cama, a pensar no pai, com vontade de pensar que a mulher estava grávida, tal como a mãe e que ele ficaria ciumento, aborrecido com a puta da velha e que encontraria a caixa com os ossos do pai, que abriria a caixa, que tirava de lá a corda da burra, que deixaria a burra fugir sem se importar que ataria a corda à trave mestra, sem se importar com os atacadores dos sapatos, tão pouco com o Derby,


 

(o Derby, os ossos do pai, a burra, a corda, os atacadores mais os sapatos,

o Benfica a ganhar ao Sporting, tudo amontoado dentro da caixa)


 

Jacinto sem se importar com o nascer do sol, nem com a aldeia a acordar com o seu nome na boca dos mexeriqueiros, Jacinto à procura da puta da velha para lhe dizer que não tinha nada que engravidar, não tinha nada que se ir embora, porque ele estava ali, se fosse preciso, para a ajudar a criar aquele filho, que ele seria capaz de lhe perdoar, porque não era como o pai, porque não queria ficar dependurado na corda da burra, só não queria ir para o frio da casa, para o frio da cozinha, para o frio da cama, nem ficar ali sentado no meio da Tasca com um estranho a olhar para ele cheio de certezas sem sequer ter aterrado da Suécia, sem sequer trazer um prémio Nobel na algibeira.


 

(para ler a ouvir “Paris Sunrise” tocado por Ben Harper)

13/5/2008

(dedicado também aos fiéis de Nossa Senhora de Fátima, seja lá quem for a senhora e também à memória do Manuel Lebres cujo fim de vida inspirou este conto)

 


publicado por Sonhador de Alpendre às 23:33
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